“Uma grande tourada na Praça de São João, com 9-Toiros Puros-9, apartados a capricho das melhores criações da ilha. Semelhante programa, apesar do «pode ser alterado por qualquer motivo imprevisto», trouxera a ilha em peso à cidade. Pelos Portões de São Pedro, pela Carreirinha, pela Boa Hora e Vinha Brava desciam das quatro costas da ilha os char-à-bancs do «monte», carregados de lavradores e de raparigas perfeitas, trens com gente da Praia, as charretttes dos calafonas rangendo nos seus coiros untados e as carripanas com as rodas de pândegos que, do proprietário ao professor e à vezes ao padre um pouco envergonhado no seu guarda-pó cinzento e na sua boquilha crestada, têm nas mãos os destinos dos sindicatos do leite, o império das freguesias. Os cavalos e os machos, sacudindo as guiseiras, bebiam nos chafarizes pródigos e monumentais da cidade; um fragor de rodas e de cabos de chicote nos raios abalava as calçadas: Eh povo… Olha a frente! _ Tire-se daí minha tia, q’ eu nã l’hei-de durar sempre!… Um fogo me pegue se não amanho hoje uã genra pra minha mãe!Na Rua dos Cavalos uma velha sevilhana que Anillo, antigo bandarilheiro aposentado em dono de restaurante La Giralda, trouxera do bairro de Triana para dar sainete à cidade, servia macarronete, arroz de pimentos, malacuetos. E as casas de pasto da Rua da Esperança, da Rua de Santo Espírito, da Rua das Frigideiras, não tinham mãos a medir a fritar linguiça e morcela que dessem para todo aquele povo. Às quatro menos cinco, a Recreio dos Artistas rompeu com um Viva La Coruña! E logo o clangor dos metais da Fanfarra Operária Pátria e Liberdade, que emulava com a Recreio para não esfriar o entusiasmo das bancadas à cunha, acordou os ecos das terras da Madre de Deus, recolhida no azul vivo da sua fachada e ermida, dominando a cidade como recordação das eras dos capitães-mores que ali se criavam e viviam. A tourada, em benefício das casas de caridade da ilha, tinha uma enchente garantida. As bancadas estavam negras de povo; de vez em quando ouvia-se estalar uma tábua. As portas dos últimos camarotes vazios davam entrada às famílias gradas da terra; alguns, seguros de lugar no espectáculo, entravam com o ar chique e blasé da última hora. A brigada dos moços de regador em punho descrevia os últimos círculos de rega na arena amarelada.Enfim, com o director de corrida trepado à inteligência ouviu-se um toque de clarim, e, abertas as portas de par em par, cavaleiros, quadrilhas e forcados abriam na arena o seu leque de penachos e de luces. Ao nono toiro, a animação da praça batia o auge. Moyanito, depois de dois quiebros formidáveis e quase sem preparação, dirigiu-se à trincheira, atravessou com o capote meia arena, como se em casa, feita a barba, se fosse chegando para a porta, de sobretudo no braço; e, em duas faenas cortadas por um breve marasmo da rês, desenvolveu um jogo de admirar num simples novilheiro. Duas verónicas perfeitas e um farol estupendo, a pés juntos, coroaram a acometida. Parecia que a praça vinha abaixo! Muleta, muleta gritavam. Então Moyanito foi buscar o trapo encarnado e, ajeitando-o rodando o braço para que lhe sujeitassem o toiro, tirou dois ou três passes de efeito. Como, porém, um começo de brisa tendesse a deixar o pano fraldejar e o toiro se furtasse ligeiramente à lide, recuando no terreno, Moyanito levantou a espada e, com a biqueira da sapatilha, polvilhou o pano, um pouco molhado, com a terra da arena, solta dos giros da brega. E, assim, precavido, enquanto um enérgico «cala a boca, burro» metia na ordem o parvo que gritava «tem cheiro! A capa tem cheiro» retomou o tércio da sombra, um pouco na defensiva. O toiro quase metido entre a espada e a parede, ainda reagiu bem. Ouvia-se-lhe o bufar baixo e encurralado e o bater da muleta nos cornos. Depois, com o cerco cada vez mais apertado, as sapatilhas de Moyanito não faziam mais ruído na arena do que as sandálias de um leigo ao longo de um claustro abandonado. A rês, que em geral arrancava viva e baixa, aspirando a fralda encarnada rente ao pé do terreno, começou outra vez a levantar a cabeça e a furtar-se ao castigo. Então o espada julgou o animal domado e nobre a ponto de lhe pôr a mão exacta e pálida na malha branca da testa, Depois, para consertar a muleta e fingir o sinal de morte, voltou-lhe desdenhosa e pausadamente as costas. A rês, traiçoeira, atirou-se como um relâmpago sobre o pobre toureiro, enfiando-o pelo cós dos calções e atirando-o ao ar como um passarinho. Uma exclamação de terror varou a praça. Furou-o de lado a lado! Está pronto! … Os peões de brega correram sobre o triste painel do gladiador, e da fera; mas já o toiro parecia ter tido tempo para reduzir Moyanito a um trapo coberto de pó. Enrodilhado e como morto, ainda pudera levar as mãos à nuca para proteger a cabeça. Via-se-lhe a camisa rota por baixo dos braços; os seus pobres interiores alvejavam por cima do traje de luces; Moyanito, com os músculos e os membros lassos, parecia uma criança inanimada que os bombeiros retiram de um incêndio, ou o velho sudário de Deposição no Túmulo. Algumas senhoras tinham desmaiado no fundo dos camarotes; outras, sem pinga de sangue, tapavam a cara. E, como era o último toiro, o Inteligente nem pôde reanimar a assistência mandando variar os toques.E, como um montão de folhas mortas que uma reviravolta de quadrante enreda e arrasta no Outono, a multidão dispersou e a arena ficou juncada de almofadas. A Recreio, fiel às praxes e já com os músicos de pé, começou a tocar, para dominar o pânico. Mas, como homenagem à valentia e ao azar de Moyanito, o passe-doble saía arrastado e triste como uma marcha fúnebre”.
MAU TEMPO NO CANAL Vitorino Nemésio