Eu tenho uma curiosa estória com João Ubaldo Ribeiro. Bem, não é com ele, que, coitado, nunca me viu mais gordo; é sobre ele. Ou melhor, sobre as crónicas dele.
Faço, antes do começo, um prévio registo de interesses: dos vivos, o João Ubaldo pode muito bem ser o maior cronista de costumes da língua portuguesa. Tenho a noção da gravidade da afirmação, mas eu acho.
Feita a advertência, saiba-se que há um bom par de anos, mão amiga, sabedora do meu enlevo por livralhada, e também, porque viera a talhe de foice numa qualquer conversa que não fixei, deu-me a conhecer um texto saboroso, cujo era (e é) "Memória de livros" [ver aqui] da lavra do supradito autor brasileiro. Tão bom ele era (e é) que continuo, ainda hoje, a fazer-lhe visitas frequentes, só pelo prazer de o reencontrar.
Lido o texto, primeiro, fiquei a matutar de onde diabo conheceria eu aquele Ubaldo, escritor. O nome não me era estranho.
Feita a competente investigação, lá confirmei que em tempos recuadíssimos, na bruma do início dos anos 80, o senhor escrevera umas crónicas no trissemanário "A Bola", aproveitando um período que vivera em Lisboa, com bolsa da Gulbenkian.
Sim, é verdade, confesso com saudade, eu lia o trissemanário "A Bola", e tenho pena de quem nunca o leu. É que "A Bola" de então está para "A Bola" dos dias de hoje como a vitela assada está para o big mac.
Segue-se que, depois, "Memória de livros" puxou curiosidade por outras escrituras daquele autor, de cuja criatividade e leveza estilística, sem rival, fiquei cliente.
A coisa poderia ter ficado por aí. Mas não.
Anos mais tarde, fui visita de uma casa. Como qualquer casa que se preze tinha as suas estantes e armários, com bibelots, retratos e uma razoável parafernália de aparelhagens de, como agora se diz, entretenimento caseiro. Porém, nas estantes, um único livro. Um só. Curioso, eu perguntava e a resposta vinha com naturalidade: "Livros? É, eu só tenho esse aí".
Conhecia o samba de uma nota só. Passei a conhecer a casa de um livro só.
O livro solitário era "A arte e a ciência de roubar galinha" de, claro, João Ubaldo Ribeiro. Comecei a lê-lo e dei comigo a devorá-lo com vagares de gourmet. Por um dia inteiro fui baiano, o que, para homem que é homem, é o melhor estado de alma que se conhece. Cheguei a ter alucinações auditivas, pois sempre que intervalava a leitura para me espreguiçar (ou seja, muitas vezes), estou capaz de jurar que ouvia uma voz de mulher chamar-me "meu rei!".
Nem sei onde é Itaparica, nunca lá pus o pé, mas passei a ser itaparicano. E acredito piamente, só de ouvir dizer, que não haja no mundo lugar melhor para namorar.
Lido o livro, confesso a vergonha de ter tido a tentação de trazê-lo comigo. Não cedi; teria sido como demolir aquela casa e cometer uma enorme traição à memória dos livros, culpa que me iria mortificar para o resto dos meus dias.
Casas há, cuja memória se basta com um livro só. Dos bons.
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