26 outubro 2007

Da percepção das barbas de Che Guevara


Há um par de meses fui a um jantar. Daqueles em que se comemora o início ou o fim de qualquer coisa.
A função prometia ser a habitual estucha e lá fui, preparado para engolir rapidamente o bacalhau com natas e zarpar à primeira oportunidade socialmente correcta.
Sucede que na hora do assentamento, as boas fadas fizeram calhar-me num lugar catita à mesa. Rodeado de gente mais ou menos conhecida, exímia no uso do verbo, a conversa fluiu ligeira e espirituosa, sempre com interesse sucessivamente renovado, proporcionando-me a descoberta de algumas qualidades escondidas nos interlocutores. Além das evidentes, é claro, que já de si eram muitas. Era o prazer da conversa (que cultivo com fervor) em todo o seu esplendor.
A páginas tantas, a propósito já não sei de quê, fiz uma inocente referência às barbas de Che Guevara. As representantes femininas (que à mesa eram a esmagadora e agradável maioria) olharam-me como se tivesse acabado de negar o dogma da infalibilidade do Papa: "Quais barbas? Que disparate! O Che Guevera não tinha barba".
Perplexo, em minha defesa, invoquei o auxilio e a cumplicidade do outro homem da mesa, que, finório, farto de saber que sim mas não querendo ficar mal visto na plateia feminina, mandou às malvas a solidariedade de género e apenas me concedeu que "el comandante" provavelmente (não era certo) apenas teria ostentado uma muito ligeira e imberbe penugem.
De nada me valeu esgrimir as minhas razões de ciência ou invocar os barbudos da Sierra Maestra. Irredutíveis se mantinham: que não, Che não tinha barba.
Vi-me, de repente, metido num episódio de Seinfeld e, à roda da barba e da boina do médico e comunista argentino, a conversa rumou patamares de erudição nunca antes alcançados e terminou a discutir Proust, às 4 da manhã, com argumentações temerárias de quem, como eu, da obra apenas lhe conhece uma citação. Difícil foi vir embora.
A contenda da barba terminou empatada no compromisso de que Guevara terá usado barba, mas antes de ter barba... não a tinha.
Fui cavalheiro e aceitei, sem ter usado o às de trunfo. Podia ter dito que antes de ter barba, Che Guevara, era apenas o Ernesto.
Gostei do empate. Pela perspectiva de que a conversa não ficou encerrada e continuará na melhor oportunidade, que, para mim já tarda.
Estando tão massificado o ícone do revolucionário do sec. XX, não é possível ignorá-lo. Mas o que é fascinante é que, mesmo das coisas óbvias, cada um tem um visão pessoal e diferente, sublinhando determinados detalhes em detrimento de outros. Ainda bem!
Barbudos que ostentais o pêlo com galhardia, é provável que ainda ninguém tenha reparado na vossa barba.
As evidências não carecem de demonstração? Vamos conversar sobre o assunto?.
PS: Já agora, assim de repente e sem olhar, Che Guevara tinha ou não tinha barba?

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